terça-feira, 20 de abril de 2010

Oito e vinte: movimento circular invonluntário














"Deixo tudo assim
não me acanho em ver
vaidade em mim
Eu digo o que condiz
Eu gosto é do estrago"
(O Velho e o Moço- Rodrigo Amarante)

Com a ponta do dedão do pé, o outro (ainda dormindo), fez um movimento circular involuntário em seu pé. Ela acordou de súbito, achara curioso aquilo; Olhou para o lado, mas o outro dormia profundamente. Ela levantou-se e foi até o banheiro, olhou-se no espelho, cabelos desgrenhados, pele levemente oleosa. Sentou-se e fez xixi, desses xixis bem longos que o corpo acumulou durante uma noite inteira. Levantou-se, e ao acabar ficou novamente de frente para o espelho. Ficou ali parada por alguns segundos observando cada detalhe e sentiu-se até bonita ali daquele jeito, meio amassada mesmo, que gostava de sua pele e as vezes achava bonita demais para ele. Antes de dar a descarga cuspiu, só depois disso é que mandou sua urina pra bem longe. Ainda insone lembrou que não gosta do barulho que a descarga faz, tinha medo desde criança, mas nunca soube bem o motivo. Voltou arrastando-se para o quarto onde o outro ainda dormia, abandonou seus chinelos macios perto da cama e deitou-se novamente. Cobriu-se um pouco na região da barriga, deixando pernas e pés de fora, gostava assim, desse jeito. Fechou os olhos tentando dormir novamente, mas ai a cabeça já estava a mil por hora. Incrível como os pensamentos matinais lhe surgiam assim loucamente, um atrás do outro e era difícil concentrar-se num só e seguir pensando somente nele. Começou pensando que precisava emagrecer, depois pensou que queria sexo, e depois que a casa precisava de arrumação, e que devia arrumar um emprego, pensou nos médicos que visitaria, na família, em alguns amigos e tantas outras coisas lhe surgiram que depois de tanto tempo e mesmo com muito esforço era quase impossível recordar-se. E pensar que todo mundo no mundo tinha problemas não mudaria em nada o modo como ela vinha se sentindo ultimamente.


*ilustração de Carmen Garcia Huerta

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Quando um fantasma se diverte (ou não)


















"Relaxando e saboreando um simpático e
quieto cigarro. E seus lábios caíram no chão"
(Fumantes de Paulo César Peréio)

E foi exatamente ali, naquele lugar tão distante, que de repente ele lhe surgiu. Como se tivesse se teletransportado, numa dessas máquinas coloridas e cheias de luzes que só existem na nossa imaginação ou nos filmes de ficção, e se materializado ali na sua frente, bem no meio da chuva. Quis trancar a respiração, não conseguia; Quis ter qualquer certeza, mas não tinha. Ficou ali paralizada pensando que alguém havia lhe apontado um controle remoto e apertado o botão PAUSE, se isso fosse possível, mas não era. Pensou que não podia ser, mas era. E só teve certeza quando o viu sozinho num canto como de costume e então na luz pôde observar bem seus pés...era ele, não lhe restavam dúvidas. Mas que diabos aquele velho fantasma solitário parado com todos os seus silêncios fazia ali? Observou-o no meio de toda aquela gente, no meio daquela fumaça e seguia achando um tanto enigmático. Que no fundo sempre teve um pouco de pena, um pouco de admiração, mas que não passava de um fantasma divertindo-se, ou não. Por fim decidiu ir embora, que aquilo não fazia mais parte de seu mundo. E assim o fez, partiu em paz.

*ilustração de Jesse Auersalo